Não é segredo para ninguém que níveis elevados de colesterol podem causar sérios danos ao organismo. Nas rodas de amigos, com os colegas de trabalho, nos veículos de comunicação, é comum o assunto vir à baila e o pedido de exames laboratoriais para medir os valores do colesterol faz parte da rotina das consultas médicas.
Em geral, alterações do colesterol elevado são assintomáticas até surgirem danos que comprometem seriamente o funcionamento do organismo. Há casos em que não se consegue baixá-lo com mudanças no estilo de vida. Adotar um programa regular de exercícios físicos, controlar a ingestão de gorduras e o peso, não fumar, nem sempre é o suficiente para controlar os níveis do colesterol no sangue e é necessário apelar para o uso contínuo e ininterrupto de medicamentos. Muitas pessoas se aborrecem com o fato de serem obrigadas a tomar remédios sempre e, ao primeiro sinal de melhora, abandonam o tratamento sem dar-se conta dos riscos que correm, uma vez que ninguém mais discute a associação entre colesterol e doença vascular arterial.
Quando medir os níveis de colesterol
Drauzio – Com que idade as pessoas devem começar a medir os níveis deve colesterol?
Protásio Lemos da Luz – Existem duas situaçoes. Pessoas sadias sem nenhuma alteração precedente nem história familiar da doença, sem parentes que tenham implantado pontes de safena, feito angioplastia ou sofrido infarto, por exemplo, devem medir os níveis basais de colesterol aos 35, 40 anos. No entanto, o grupo de pessoas com história familiar de doença aterosclerótica (enquadram-se nesse caso os infartados que já foram operados e os que fizeram angioplastia) precisam de análise muito mais precoce, entre os 15 e os 20 anos. Em subgrupos, que são pequenos, com alterações genéticas dos elementos que contribuem para a elevação do colesterol do plasma – o mais importante é a hipercolesterolemia familiar -, a dosagem tem que ser feita ainda na infância.
Precisa ser lembrado que a alteração do colesterol no plasma isoladamente não causa sintomas. A manifestação clínica só aparece quando há obstrução de alguma artéria no coração ou nos membros inferiores, por exemplo. Portanto, a medida dos valores plasmáticos do colesterol deve ser feita como rotina e não porque houve a manifestação de um sintoma qualquer.
Colesterol e suas frações
Drauzio – Há 40, 50 anos, a questão do colesterol era simples. Considerava-se colesterol elevado acima de 240; de 200 a 240 era normal e menos de 200, baixo. Depois foram descritas as frações do colesterol e surgiram os conceitos de HDL, o bom colesterol, e de LDL, o colesterol ruim. O que significa colesterol bom e ruim e o que é desejável nos níveis dessas frações?
Protásio Lemos da Luz – Eu diria ainda mais. Quando eu era estudante na Faculdade de Medicina, a questão fundamental era saber para que servia o colesterol. As primeiras documentações experimentais de que o colesterol aumentado causava doença foram feitas na Rússia, entre 1908 e 1913. Os russos provaram que dieta rica em colesterol causava aterosclerose. No entanto, foi só depois de o artigo escrito pelo russo Anitschkow, que provocou aterosclerose em coelhos alimentando-os com colesterol, ser publicado numa revista americana, que o assunto despertou a atenção da Associação Americana do Coração.
Logo a seguir, teve início o famoso estudo de Fremingham, uma cidadezinha nos Estados Unidos cuja população vem sendo investigada desde então para acompanhar a evolução da doença no que diz respeito aos fatores de risco para aterosclerose, entre eles o colesterol.
Hoje se sabe que o colesterol total é composto pelo menos por duas frações: o HDL (High Density Level), o colesterol de densidade alta e o LDL (Low Density Level). O HDL é o colesterol protetor, quer dizer, seus índices elevados se associam à mais baixa incidência de doenças cardiovasculares. Isso se aplica, por exemplo, às mulheres. Na pré-menopausa, é comum elas apresentarem níveis de 50 a 100 de HDL, valores que não se encontram nos homens.
Drauzio – Às vezes, o valor de colesterol total está elevado porque os de HDL estão altos.
Protásio Lemos da Luz – A medida isolada do colesterol total pode enganar. É preciso considerar as frações. À proporção que os estudos epidemiológicos foram sendo feitos, os conceitos foram se ajustando aos achados que mostraram ser o LDL aumentado causa importante de doença coronária. Se não houver nenhum outro fator de risco, LDL até 130mg/dl é tolerável. Se a pessoa, porém, já teve um evento como um infarto, foi operada ou fez angioplastia, o LDL deve ficar abaixo de 100. O mesmo critério se aplica, quando simultaneamente ocorrem dois ou mais fatores de risco (tabagismo, hipertensão, diabetes, etc.) que também não podem deixar de ser controlados.
Drauzio – É importante gravar esse número. Se a pessoa não tem fator de risco nenhum, não fuma, não é diabético, nem hipertenso ou sedentário, não tem história familiar da doença, LDL até 130 é aceitável.
Protásio Lemos da Luz – Se a pessoa já manifestou eventos como infarto, cirurgia de revascularização, angioplastia ou fez coronariografia que demonstra a presença de lesão, o LDL precisa ficar abaixo de 130. Entretanto, se existem fatores de risco associados como diabetes, hipertensão e fumo, deve ficar abaixo de 100.
Drauzio – Acima de 130 não é aceitável.
Protásio Lemos da Luz – Acima de 130 é um sinal amarelo que merece consideração. Em geral, entre 130 e 160, preconiza-se dieta, não necessariamente acompanhada de remédio.
Características do HDL
Drauzio – Em relação ao HDL, quais os valores desejáveis?
Protásio Lemos da Luz – Vários estudos na literatura mostram que HDL elevado protege e baixo constitui fator de risco. No nosso laboratório do Incor, há trabalhos demonstrando que no homem HDL abaixo de 40 associa-se a uma evolução pior entre os doentes submetidos à cirurgia de revascularização miocádica.
Um grupo de pacientes (a média de HDL era ao redor de 30 nesse grupo) que analisamos por quase seis anos indicou claramente que eles estão sujeitos a maior mortalidade. Diante desse dado, tentamos descobrir por que isso acontece e analisamos a função endotelial (lembrando que endotélio é uma camada celular que reveste internamente os vasos). Pudemos demonstrar, então, que pessoas com HDL baixo têm disfunção endotelial, ou seja, os vasos têm capacidade de dilatação menor. E mais: HDL baixo e LDL aumentado indicam que estamos lidando com dois importantes fatores de risco.
Drauzio – HDL baixo é fator de risco isolado?
Protásio Lemos da Luz – HDL baixo isoladamente é fator de risco. Em trabalho recente realizado no Incor, analisamos a relação triglicérides e HDL, uma vez que triglicérides isolado também é fator de risco. O estudo mostrou que, quando essa relação está aumentada, ou seja, triglicérides aumentados ou HDL baixo, não só a manifestação da doença coronária é 5 ou 6 anos mais precoce do que nas pessoas em que essa relação é normal, como a ocorrência de infarto também é muito mais precoce.
Essas conclusões nada têm a ver com LDL. Estamos lidando agora com o HDL e insistindo que, em níveis baixos, ele é um fator de risco importante. Estamos demonstrando, ainda, que é possível corrigir o HDL baixo de três maneiras: não fumando, fazendo exercícios físicos e tomando um remédio, a niacina, que aumenta os níveis de HDL e corrige a disfunção endotelial mencionada anteriormente.
Por isso, repito, a avaliação do colesterol total e de suas frações é muito importante para estabelecer prognóstico.
Tratamento
Drauzio – Se apareço no seu consultório com o HDL baixo e o LDL elevado, ou as duas coisas simultaneamente, o que deve ser pior, a recomendação é mudar o estilo de vida. Que impacto tem essa mudança na correção dos níveis de colesterol?
Protásio Lemos da Luz – Essa é uma pergunta prática e muito importante. O primeiro passo é analisar os níveis do colesterol e o conjunto de fatores de risco a que a pessoa está exposta. Se a alteração de LDL for de discreta a moderada, a orientação mais correta é avaliar a parte dietética e tentar adequá-la. Para tanto, é preciso fazer uma investigação precisa dos hábitos alimentares do paciente. Se perguntarmos “O senhor come carne?” e ele responder que não, mas que come queijo, e bastante, o problema continua o mesmo e deve-se tentar corrigir esse desvio. No entanto, mesmo que novos hábitos sejam adotados e a dieta seja seguida à risca, quanto ele consegue reduzir no total? Pouco, de 15% a 20%, não mais que isso. Imagine, então, que o LDL seja 200. Depois de enorme esforço, cairá para 160, 170, mas a pessoa continuará em risco.
Portanto, se o nível estiver de fato aumentado, é fundamental fazer duas coisas: indicar medicamentos e corrigir a dieta. Às vezes, o médico dá o remédio, mas o doente não faz dieta. Não adianta nada. Está gastando dinheiro à toa. Ele tem que fazer as duas coisas ao mesmo tempo, porque estamos falando de um problema a longo prazo, não de um episódio como uma pneumonia ou uma gripe que se trata e a doença acaba. Não, a alteração associada à aterosclerose, no caso o colesterol, é uma doença metabólica que nunca mais desaparece. Por isso, é importante falar a respeito da mudança do estilo de vida porque determinados comportamentos jamais poderão ser abandonados.
No que se refere ao uso de medicação, há casos em que ela é absolutamente necessária, pois a dieta reduz pouco os valores do colesterol. Terapêuticas existem e muitas. Há drogas muito eficientes e bem toleradas que atuam sobre a formação enzimática do colesterol no fígado. São as estatinas. Outras atuam sobre a absorção do colesterol no intestino. Existe ainda a colesteramina, uma droga mais antiga, e atualmente apareceu uma nova que também é muito boa. Todas elas permitem combinações que podem ser utilizadas para reduzir o LDL de forma eficiente.
Drauzio – Remédios para a vida inteira ninguém gosta de tomar. Que argumentos você usa para convencer uma pessoa dos benefícios que terá se aderir ao tratamento por toda a vida?
Protásio Lemos da Luz – De fato, existem pessoas que precisam tomar esses remédios a vida inteira ou porque têm colesterol aumentado e já sofreram eventos, especialmente infartos, ou porque apresentam um conjunto de fatores de risco que indicam prognóstico ruim.
Que argumento empregar nesses casos? Conheço pelo menos cinco razões para o indivíduo não abandonar o tratamento. Inúmeros estudos comprovam a eficácia da chamada prevenção secundária. Quando esses pacientes são tratados, melhora praticamente tudo. Diminui não só a mortalidade cardiovascular, como a mortalidade global por qualquer outra causa. Diminui a necessidade de cirurgia de ponte de safena, de angioplastia e de internação hospitalar. Ele certamente irá morrer mais tarde e usufruirá melhor qualidade de vida. Acredito que esses sejam argumentos fortes.
Drauzio – Pessoas que não tiveram nada são mais difíceis de convencer?
Protásio Lemos da Luz – Existem três grandes estudos mundiais mostrando que o tratamento da dislipidemia é favorável para as pessoas que não apresentam sintomas, mas têm colesterol aumentado. É a prevenção primária que reduz os eventos nas mulheres, nos hipertensos, nos diabéticos, nos fumantes, em todo o mundo, enfim. Não dá para ficar com colesterol elevado sem tratar. O que podemos discutir é qual o melhor tratamento, o mais eficiente, mais barato e o que não incorre em efeitos colaterais. Para convencer essas pessoas da importância da aderência ao tratamento, o melhor argumento é também que terão vida mais longa e de melhor qualidade.
Drauzio – Hoje existem várias drogas que podem ser usadas com segurança para baixar o colesterol. Sua experiência clínica mostra que as pessoas suportam bem o tratamento ou ocorrem efeitos colaterais indesejáveis?
Protásio Lemos da Luz – A grande maioria tolera muito bem. As estatinas, em especial, são drogas muito eficientes e representaram uma revolução no controle dos níveis de colesterol. Para ter idéia de como conceitualmente isso é importante, basta lembrar que os descobridores do mecanismo de receptores ligados ao metabolismo de LDL que permitiu o desenvolvimento desses medicamentos mereceram o Prêmio Nobel de Medicina, em 1985.
Essas drogas têm alguns efeitos colaterais, só que a incidência é muito baixa e, uma vez suspenso seu uso, eles desaparecem. Além disso, é possível empregar associações de medicamentos. Pode-se, por exemplo, reduzir a dosagem de estatina associando-a com uma droga que atue na absorção do colesterol intestinal e que não apresente efeitos adversos.
O ponto fundamental é que hoje praticamente não existe paciente que não possa ser tratado, mesmo porque os efeitos colaterais dessas drogas são poucos e contornáveis. Quais são eles? Dores nas pernas, dores musculares, obstipação intestinal e, em alguns doentes, alterações de enzimas hepáticas ou do sono, mas nada que não desapareça se a droga for suspensa ou trocada por outra.
Drauzio – E os resultados são impressionantes. Quando comecei a observá-los, eu não acreditava. Um paciente com 220 de LDL, depois de 30 dias de tratamento, repetia o exame e estava com 80.
Protásio Lemos da Luz – Resultado que não se obtinha antes do aparecimento dessas drogas. A dieta não produz tamanha redução. O exercício físico ajuda, mas pouco. O segredo do sucesso no tratamento está em ajustar a dieta, fazer exercícios e usar a terapêutica de maneira individualizada. Cada pessoa demanda um tipo de medicamento específico e numa dosagem determinada para seu caso.
Importância do acompanhamento médico
Drauzio – Esse é um tipo de medicação que requer acompanhamento médico?
Protásio Lemos da Luz – É muito comum ver que o médico receita estatina, a pessoa toma durante dois meses e, assim que os níveis de colesterol se normalizam, ela suspende o tratamento sem levar em conta que, parando de tomar o remédio, em 20 ou 30 dias, o colesterol estará de novo lá em cima.
Ninguém pode esquecer que estamos tratando de uma doença metabólica crônica muito diferente de uma fratura, por exemplo, que se corrige e, pronto, acabou o problema.
Sempre digo que doença boa de tratar é doença que dói, porque o paciente procura o médico e segue o tratamento. Hipercolesterolemia não dói. Por isso, demanda paciência e capacidade por parte do médico para convencer o leigo da importância do acompanhamento clínico e da aderência ao tratamento.
Drauzio –Atualmente, os diabéticos todos têm consciência de que, na maioria dos casos, terão que fazer o tratamento para o resto da vida. Com a hipercolesterolemia a abordagem deveria ser mais ou menos a mesma: não há como suspender o tratamento.
Protásio Lemos da Luz – Eu diria que é o mesmo tipo de abordagem. Em relação ao diabetes, o problema é um pouco mais sério. Estudos que acompanharam a evolução de pacientes com diabetes e de pacientes não diabéticos que sofreram infarto demonstraram que, depois de cinco ou sete anos, a mortalidade era exatamente a mesma nos dois grupos.
É claro que o melhor é não ter nenhuma das duas doenças e o pior é ter as duas, ter infarto e ser diabético, mas o lado positivo é que existe tratamento para ambas. Veja o caso do infarto. Os índices de mortalidade reduziram-se muito. Atualmente, na Unidade Coronária do Incor, apenas 7,4% dos infartados homens morrem. Há não muito tempo, morriam bem mais de 20%. Nas mulheres esses números são um pouco maiores, mas nada que faça diferença significativa. E ainda tem mais: mesmo que a pessoa sofra um infarto, nós temos como corrigir até certo ponto as consequências desse evento no ventrículo e nas artérias que não foram diretamente atingidas. Com o diabetes dá-se o mesmo. O problema é que na prática existe um número enorme de doentes com diabetes mal controlado, assim como existem muitos com hipercolesterolemia mal controlada.
Drauzio – É um erro achar que a doença estará perfeitamente controlada com apenas um comprimido tomado regularmente.
Protásio Lemos da Luz – Há três situações que se encaixam no mesmo critério de necessidade de acompanhamento: pressão arterial, controle do colesterol e diabetes, doenças que não dão necessariamente sintomas. Os casos de hipertensão são típicos. “O senhor tem hipertensão? Tenho. O que o senhor toma? Tal medicamento. Controla? Não”.
Não pode ser assim. Tratamentos para a pressão, colesterol ou diabetes precisam ser feitos com o objetivo de atingir os valores normais de pressão, de LDL ou de glicemia.
Drauzio – As pessoas que apresentam esses problemas, muitas vezes se revoltam contra o controle a que devem submeter-se. Elas precisam convencer-se de que a natureza nem sempre é justa. Algumas nasceram com pressão arterial normal e vão morrer com ela assim. Quem não teve essa sorte, precisa de controle periódico.
Protásio Lemos da Luz – Concordo inteiramente com o que você disse, mas acrescento que existe um grupo de pessoas que diz – não gosto de tomar remédios – e eu acho engraçado. Veja a grande sobrevida que os remédios possibilitaram para as doenças infecciosas. Tome por hipótese a tuberculose e a endocardite bacteriana, uma infecção dentro do coração sempre fatal antes do advento da penicilina. Com a tuberculose não foi muito diferente. Graças a Deus, houve progresso e há como tratar essas doenças. Remédios são produtos tecnológicos, como o avião e o computador, e permitem viver mais e melhor. Não compreendo como alguém pode ser contra eles. Tem que ser contra a doença e não contra os remédios que representam a possibilidade de cura. É claro que eles só devem ser dados para quem realmente precisa, durante o tempo necessário e na dose adequada.
Outra coisa interessante é que, às vezes, o doente passa a impressão de que culpa o médico pelo diagnóstico da doença. Digo-lhes, então: “Meu amigo, quem fez a doença se instalar não fui eu, foi a natureza. Estou só procurando ajudar no controle e tratamento”.Dr. Protásio Lemos da Luz é médico cardiologista. Professor e pesquisador, dirige a Unidade de Aterosclerose do Incor, o Instituto do Coração da Universidade de São Paulo.
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